DÉCIMA-NONA CARTA

VISCONDE DO RIO BRANCO
VISCONDE DO RIO BRANCO

Corte, 19 de abril de 1851

Está quase a desaparecer a Semana Santa, em que, a par da sincera devoção, tantas profanações se praticam, tantas ridicularias aparecem, que revoltam a um consciencioso cristão e tiram o siso ao mais austero beato.
Não sou dos que melhor podem apreciar o ranger de um vestido de sarja, as oscilações de um brinco de brilhantes, as pregas duvidosas de um véu pudibundo, as palpitações de um seio de alabastro entre-descoberto e oculto. Embirro com o desgracioso capote e lenço com que se cobrem certas beatitudes, ou alguma devota menos socorrida; embirro tanto ou mais com as roupetas de que certos janotas se apavoram, entretanto que assim ficam transformados na pública-forma de um sacristão.
Mas o que sobretudo me causa quase invencíveis frenesis é ver pelas ruas uma casaca envergonhada de se achar sobre os ombros de um desgraçado, profano, ouvir os queixumes patéticos de umas luvas pretas impostas, a umas mãos assalvajadas, e a estrangulação voluntária de alguns pintalegretes numa gravata infinitamente apertada.
Que se façam versos ao divino, que se ore devotamente na igreja, que tome luto a cristandade em solene comemoração da paixão de Cristo, penso que é um dever imperioso para uns e uma missão sagrada para outros. Mas que as romarias se transformem em passeios de ostentação profanas, que a devoção degenere em folia e as casas do Senhor se convertam em salões de aparatos e vaidades humanas; que se proscrevam todas as regras do bom senso, que se atente contra a verdade dos mistérios da nossa crença é certamente não só para lastimar, como até para fazer admirar até onde chega a vaidade de uma carolice, que, se é sincera, não é de certo esclarecida pala leitura dos livros sagrados.
Há um ano que a população fluminense terrificada por uma cruel epidemia, ferida em suas mais caras afeições, mal pôde dirigir-se aos templos para orar pelo Senhor e por aqueles que a morte acabava de roubar-lhe. As ruas eram quase ermas, e as igrejas poucos fiéis contavam em seu seio nas horas de fervor religioso.
Este ano a mudança não podia ser mais completa. O flagelo deixou-nos, e queira Deus que para sempre; um céu azulado, um luar como dia, uma fresca brisa, paz e tranqüilidade geral, tudo convidava à romaria e às práticas religiosas.
Dar-lhe-ia todos os meus remanescentes destes últimos dez anos, e até. se o possuísse, todo o império do Grão-Mogol, se me enviasse pelo primeiro correio um termo com que para outra vez lhe pudesse pintar o atropelo em que a multidão de fiéis e curiosos invadiu os templos abertos nas noites de quinta e sexta-feira santas, e principalmente o paço imperial. Deste até a igreja de S. Francisco de Paula, pelas ruas Direita e do Ouvidor, era tal a massa negra que se movia em todos os sentidos, que quem do alto de qualquer edifício lhe fitasse os olhos, julgaria ver em noite tempestuosa encapeladas ondas como que em mal ferida luta esforçando-se por mergulharem-se reciprocamente.
Aqui gritava um ancião pela filha, que se desgarrava do rancho. Ali era a mãe ou a tia que gritava "para onde olhas Henriqueta? Vê se te esbarras com algum valdevino!" Acolá era a moça que clamava pelo lenço ou pelo leque, que mão ligeira gafara, e ela julgava ter deixado onde para descansar ajoelhara. Mais adiante era uma esperta beleza que se fingia atarantada, e a ponto de ser levada pela torrente, para sorrateiramente empalmar, e rapidamente guardar na algibeira, uma epístola sentimental, engrascada em essência e destinada a sossegar as palpitações impacientes de um coração apaixonado.
No paço apenas caiu a noite, foi saguão invadido pelo turbilhão que em tal ocasião é admitido - assim desencadernadamente - aos salões do monarca. Era a entrada pelas portas que olham para o mal seguro aterro, que em vez de cais a ilustríssima ali fez construir, e pelas duas que lhes ficam laterais. Três vezes tentei subir, três vezes fui repelido! Da primeira estorvaram-me as sentinelas, parodiando o mui conhecido brado da velha guarda: on ne passe pas, porque o monarca ainda não havia saído. Da segunda tive medo de asfixiar-me pelo condensado cologne que exalavam corpos de descomunais volumes e que nessas ocasiões surgem só eles sabem donde. Da terceira recuei espavorido pelo arreganho de um bravo de bigodes, que trazia dois estreitos galões nos punhos da farda, a razão à cinta, e duas damas a reboque: arremetendo e acotovelando homens e senhoras, abria espaço aos medonhos gritos de licença, meus senhores! licença, meus senhores! Veni, vidi, vinci, disse ele por certo às suas Dulcinéias quando as tinha posto a salvo e em segura praça; e de feito, mostrou no paço que era tenente! Mais cinco como este nas fileiras do nosso exército, e adeus Rosas, adeus Palermo e seus fuzilamentos.
Um respeitável ancião que ali esperava aberta para satisfazer a curiosidade de suas filhas, tendo podido arrancá-las ao furor do nosso Cesar, dizia muito comovido: Ë é a na morada da paz e do respeito que se vêem estas coisas!!".
Eu que também levava pelo braço a minha Eva a quem procuro poupar, porque sei quanto me ela custou, desviei-a com o maior cuidado, e resolvi procurar alguma brecha manos defendida para penetrar na sitiada fortaleza. Em boa hora o fiz, porque num esfregar de olhos pisávamos o abafador tapete, e entrávamos nas salas em que tantos passos se têm perdido.
Enquanto uns contemplavam o trono com respeito, e outras lhe punham a mão por cima a ver se era coisa viva, a avidez ou a inveja destes lançavam vesgos olhados às baixelas, e a coquetterie daquelas se espanejava diante dos espelhos; eu desenganado de possuir aquelas, e desavindo com estes por sua inconstância, fitava os olhos nesse banco, nesse jarro e nessa bacia, que ainda ali davam testemunho da santidade da religião que faz o chefe de uma grande nação depor a majestade, e curvado aos pés de doze pobres lavá-los, e assim provar praticamente que
"O homem favor e ajuda ao homem deve,
"Mútua beneficiência os entes ligue."
Estes três instrumentos resumiram em meu espírito toda religião da Bíblia! E mesmo teria tempo de recordá-la literalmente, porque a turba que me precedia estava presa pelo encanto, e julgava-se no paraíso, aquecida a uma temperatura de 90 graus que lá havia, tão pouco se adiantava! Vencida, porém, a distância entre a porta da entrada e a da saída, caí outra vez no torvelinho das praças e ruas, não sem calcular quanto me levariam o médico e o boticário pela constipação já com tanto custo adquirida; e da qual, mercê de Deus, logo curou-me a marcha forçada com que me recolhi a quartéis.
Quando, antes de fazer pazes com Morfeu, passava em revista de minha imaginação o que tinha visto, ainda não podia crer como escapamos incólumes, eu, minha cara metade e nosso fato de ver a Deus!
Ó! é uma maravilha de que nenhuma das mais civilizadas cidades da velha Europa poderia ufanar-se: trinta mil pessoas pelo menos, de todas as idades e condições, abalroar-se em noite escura sem que uma só fosse molestada, ou visse arrebatar-lhe uma arrecada da orelha, de tantas de ricos brilhantes que haviam é um fato que só se dá no Brasil, e que altamente depõe em favor da doçura de nossos costumes, da riqueza ou do bem-estar dos habitantes desta terra abençoada.
Vinha agora a pêlo, mas não falarei mais das miríadas de luzes e da prataria que nos templos deslumbravam os visitantes. Não insistirei nesse mau gosto, nessa religiosa patacoada, que faz da casa do Senhor uma feira de leiloeiro, que adorna os altares e as banquetas com a bacia, o jarro, a salva, o castiçal, que no uso doméstico serviriam para tanta coisa oculta, e areadinhas vão chamar as vistas que só deveriam elevar-se às imagens do Redentor e dos Santos.
"São modas que vêm com o tempo,
"O tempo as acabará."
Demos agora um salto de Leucates e vamos banhar-nos às margens do Uruguai. Tendo traçado-lhe as feições da semana, descrito-lhes suas cenas mais divertidas e episódios mais importantes, seja-me lícito entrar um pouco pelo mundo político, subir aos Andes, e das regiões do condor americano observar as riquezas do nosso continente e as desgraças dos nossos vizinhos.
Mas não saltemos de chofre, que correríamos o risco de não vencer o espaço; ganhemos terreno, tomemos carreira de mais longe.
As últimas notícias recebidas do Rio da Prata apertaram o coração de todos os que o tem suscetível de impressões generosas. E se antes as desavenças do império com a fera dos Pampas era objeto que a muitos preocupava, a narração dos novos horrores, coincidindo com a saída da esquadra brasileira, e com a aproximação da abertura da assembléia geral, fez subir de ponto a ansiedade pública a esse respeito.
Que novidades de política interna e externa nos trará a nova sessão legislativa? Apanhará o ministério grande temporal pela proa, levantado mesmo pelos seus Bóreas? Triunfará dos elementos? O que fará a oposição?
Não estou habilitado, cá no meu remoto tugúrio, para responder a nenhuma dessas perguntas, que são o tema político da atualidade; e nem tenho oráculo a que possa recorrer. Direi, porém, quais são as conjeturas de um velho que observa o mundo através de um microscópio, e o que eu próprio nas minhas tímidas excursões hei podido colher.
Que o ministério tem desafetos, senão também inimigos dentro dos seus próprios acampamentos, não é preciso muito para o saber; basta atender a que já é um velho de mais de trinta meses e portanto com todos os senões e achaques da sua, para nós, longa idade. Mas o que também é certo é que o velho tem muito amor à vida, e é muito acautelado para que se deixe morrer de morte macaca.
Em todo o caso, a política atual não sucumbirá, poderá sofrer modificações de forma e restrições no seu desenvolvimento; porque nem os ventos sopram noutro sentido, nem a oposição anti-saquarema se mostra desejosa do poder (antes parece olhar para ele com horror), e nem é moralmente possível que um novo corpo ministerial da mesma têmpera se formasse sem que nele entrasse, pelo menos, um dos membros do atual.
A honra do partido dominante, e mais do que isso, a honra e os interesses do império exigem que a cabeça que concebeu e principiou a dar execução à nova política brasileira concernente à grave questão do Prata seja a mesma que a dirija até ao seu completo desenvolvimento.
Será muito difícil que esta alta consideração de Estado não abafe todos os ressentimentos que possam existir no seio da família ministerial, tomada esta palavra na sua mais larga acepção política. Consta que alguns desses ressentimentos acham-se muito exaltados e ameaçam explosão: mas não há dúvida de que eles derivam de causas muito insignificantes em relação aos inconvenientes de qualquer desvio na direção dada à política sul-americana, e, bem que eles sejam por si sós impotentes, ante a consideração do apoio moral que assim receberia o nosso inimigo externo.
Três dissidentes, como os mais decididos, dão corpo a essas apreensões que nutrem certos ministeriais de que possa haver entre eles algum escândalo, ou ao menos alguma desagradável querela de família. Quem tiver viva a recordação de certos fatos ocorridos o ano passado nas duas casas do parlamento, quem souber a história de certa administração provincial, e se tiver apercebido de certas manifestações que a imprensa desta cidade há meses revela, não levará muito tempo para atinar com os três indivíduos a quem me refiro.
Por outro lado, qual será o comportamento da diminuta fração oposicionista da Câmara temporária? Não é ela tão diminuta como o foi o ano passado, porque reforça-se com um distinto orador da oposição paulistana, e pode ganhar mais um membro conspícuo da província de Minas, outro do Rio Grande, e com mais probabilidade, um da província da Bahia. No primeiro caso ficará com sete combatentes, no segundo seu número poderá chegar a dez.
Mas não é natural que a oposição parlamentar esteja possuída dos mesmos sentimentos de concórdia, ou pelo menos de moderação, que caracterizam a fisionomia política da quadra atual? Debatidas as grandes questões que o acontecimento de 29 de setembro de 1848 originou, tendo já as paixões obtido largo curso ao seu desafogo, não é muito provável que comece o domínio da razão, e com ele venham as reparações dos estragos causados por uma luta das mais renhidas e desastrosas?
E quando o tempo e seus desenganos não tenham ainda operado a cura moral dos espíritos e extinguido o fogo das odiosidades, quando a tendência utilitária da época não esteja tão generalizada como suponho, a situação do império em relação ao estrangeiro não será incentivo mais que forte para reter em seus impulsos o oposicionista mais ardente?
E minha opinião a guerra entre o império e o tirano de Palermo é inevitável. Ele conta que as dicenssões internas, o alucinamento de certos patriotas, virão em seu auxílio, e produzirão resultados análogos aos de 1827 e 1828. Qualquer, porém, que seja a opinião dos adversários do governo sobre a marcha que tem seguido nossa política exterior, no estado a que chegou, não é moralmente possível que haja patriota tão apaixonado que não veja a humilhação a que exporia o país, os transtornos que lhe causaria, se sua voz se elevasse para condenar essa política. Não é evidente que esse procedimento, contra as mais puras intenções de quem o tivesse, seria um apoio indireto prestado ao inimigo do Brasil, ao flagelo das populações do Prata e seus confluentes? A nossa questão com Oribe, tenente do ditador de Buenos Aires, é uma questão de segurança para o presente e para todo o sempre; é uma questão de progresso e civilização para nós, para nossos vizinhos, para a humanidade em geral. Que brasileiro, sem estar possuído de um fanatismo que me custa a compreender seja possível, se atreverá a contrariar o governo do seu país em emprenho tão sagrado? (...)
(Cartas Ao Amigo Ausente, 1853)

Fonte: ABL

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