A MORTE DE SALÍCIO EPICÉDIO II Espírito imortal, tu que rasgando Essa esfera de luzes, vais pisando Do fresco Elísio a região bendita, Se nesses campos, onde a glória habita, Centro do gosto, do prazer estância, Entrada se permite à mortal ânsia De uma dor, de um suspiro descontente, Se lá relíquia alguma se consente Desta cansada, humana desventura, Não te ofendas, que a vítima tão pura, Que em meus ternos soluços te ofereço, Busque seguir-te, por lograr o preço Daquela fé, que há muito consagrada Nas aras da amizade foi jurada. Bem sabes, que o suavíssimo perfume, Que arder pode do amor no casto lume, Os suores não são deste terreno, Que odorífero sempre, e sempre ameno, Em coalhadas porções Chipre desata: Mais que os tesouros, que feliz recata A arábica região, amor estima Os incensos, que a fé, que a dor anima, Abrasados no fogo da lembrança. Esta pois a discreta segurança, Com que chega meu peito saudoso, A acompanhar teu passo venturoso, Oh sempre suspirado, sempre belo, Espírito feliz: a meu desvelo Não negues, eu te rogo, que constante Viva a teu lado sombra vigilante. Inda que estejas de esplendor cercada, Alma feliz, na lúcida morada, Que na pompa dos raios luminosa Pises aquela esfera venturosa, Que a teu merecimento o Céu destina; Nada impede, que a chama peregrina De uma saudade aflita, e descontente, Te assista acompanhando juntamente. Antes razão será, que debuxada Em meu tormento aquela flor prostrada, Sol em teus resplendores te eternizes, E Clície em minha mágoa me divises; Entre raios crescendo, entre lamentos, Em mim a dor, em ti os luzimentos. Se porém a infestar da Elísia esfera A contínua, brilhante primavera Chegar só pode o lastimoso rosto Deste meu triste, fúnebre desgosto, Eu desisto do empenho, em que deliro; E as asas encurtando a meu suspiro, Já não consinto, que seu vôo ardente A acompanhar-te suba diligente: Antes no mesmo horror, na sombra escura Da minha inconsolável desventura Eu quero lastimar meu fado tanto, Que sufocado em urnas de meu pranto, A tão funesto, líquido dispêndio, A chama apague deste ardente incêndio. Indigno sacrifício de uma pena, Que chega a perturbar a paz serena De umas almas, que em campos de alegria Gozam perpétua luz, perpétuo dia; Que adorando a concórdia, desconhecem Os sustos, que da inveja os braços tecem; Que ignoram o rigor do frio inverno; E que em brando concerto, em jogo alterno Gozam toda a suavíssima carreira De uma sorte risonha, e lisonjeira. Ali, entre os favônios mais suaves, A consonância ofenderei das aves, Que arrebatando alegres os ouvidos, Discorrem entre os círculos luzidos De toda a vegetante, amena estância. Ali pois as memórias de minha ânsia Não entrarão, Salício: que não quero Ser contigo tão bárbaro, e tão fero, Que um bem, em cuja posse estás ditoso, Triste magoe, infeste lastimoso. Cá vivera comigo a minha pena, Penhor inextinguível, que me ordena A sempre viva, e imortal lembrança. Ela me está propondo na vingança De meu fado inflexível, ó Salício, Aquele infausto, trágico exercício, Que os humanos progressos acompanha. Quem cuidara, que fosse tão estranha, Tão pérfida, tão ímpia a força sua, Que maltratar pudesse a idade tua, Adornada não só daquele raio, Que anima a flor, que se produz em maio; Mas inda de frutíferos abonos, Que antecipa a cultura dos outonos! Cinco lustros o Sol tinha dourado (Breves lustros enfim, Salício amado), Quando o fio dos anos encolhendo, Foi Átropos a teia desfazendo: Um golpe, e outro golpe preparava: Para empregá-lo a força lhe faltava; Que mil vezes a mão, ou de respeito, De mágoa, ou de temor, não pôs o efeito. Desatou finalmente o peregrino Fio, que já tecera. Ah se ao destino Pudera embaraçar nossa piedade! Não te glories, trágica deidade, De um triunfo, que levas tão precioso: Desar é de teu braço indecoroso; Que inda que a fúria tua o tem roubado, A nossa dor o guarda restaurado. Vive entre nós ainda na memória, A que ele nos deixou, eterna glória; Dispêndios preciosos de um engenho, Ou já da natureza desempenho, Ou para a nossa dor só concedido. Salício, o pastor nosso, tão querido, Prodígio foi no raro do talento, Sobre todo o mortal merecimento; E prodígio também com ele agora Se faz a mágoa, que o lastima e chora. A lutuosa vítima do pranto Melhor, que o imarcescível amaranto, Te cerca, ó alma grande, a urna triste; O nosso sentimento aqui te assiste, Em nênias entoando magoadas Hinos saudosos, e canções pesadas. Quiséramos na campa, que te cobre, Bem que o tormento ainda mais se dobre, Gravar um epitáfio, que declare, Quem o túmulo esconde; e bem que apare Qualquer engenho a pena, em nada atina. Vive outra vez: das cinzas da ruína Ressuscita, ó Salício; dita; escreve; Seja o epitáfio teu: a cifra breve Mostrará no discreto, e no polido, Que é Salício, o que aqui vive escondido. --------------------------------------- GALATÉIA CANTATA III Galatéia, Acis. Ácis. Galatéia adorada, Mais cândida e mais bela, Que a neve congelada, Que a clara luz da matutina estrela; Mais, do que o Sol, formosa; Não digo lírio já, não digo rosa. Gal. Ácis idolatrado, Pastor mais peregrino, Que quanto ostenta o prado, Quanto banha d'Aurora o humor divino; Pois junto às tuas cores Não tem o prado cor, não têm as flores. Ácis. Ácis é, quem saudoso Corre desta ribeira Todo o campo espaçoso, Buscando, ó bela Ninfa, a lisonjeira, Doce vista, que tanto De Amor ateia o suspirado encanto. Gal. Desde o azul império, Que rege o áureo Tridente, Por todo este hemisfério, Galatéia te busca impaciente; E amante nos seus braços Te prepara de amor gostosos laços. Ácis. Vem ouvir-me um instante; Que em mim tudo é ternura. Do bárbaro Gigante Não temas, não a pálida figura: Que o tem seu triste fado, Tanto como infeliz, desenganado. Vem, ó Ninfa ditosa, Vem, vem; Que em ti Amor guarda Todo o meu bem. Gal. Oh! Firam teus ouvidos Meus saudosos clamores; Mereçam meus gemidos Mover a sem-razão dos teus rigores; Já que tão docemente Sempre ao meu coração estás presente. Vem, ó Pastor querido, Vem, vem; Que em ti Amor guarda Todo o meu bem. --------------------------------------- ROMANCES L I S E ROMANCE I Pescadores do Mondego, Que girais por essa praia, Se vós enganais o peixe, Também Lise vos engana. Vós ambos sois pescadores; Mas com diferença tanta, Vós ao peixe armais com redes, Ela co'olhos vos arma. Vós rompeis o mar undoso: Para assegurar a caça; Ela aqui no porto espera, Para lograr a filada. Vós dissimulais o enredo, Fingindo no anzol a traça; Ela vos expõe patentes As redes, com que vos mata. Vós perdeis a noite, e dia Em contínua vigilância; Ela em um só breve instante Consegue a presa mais alta. Guardai-vos, pois, pescadores, Dos olhos dessa tirana; Que para troféus de Lise Despojos de Alcemo bastam. Enquanto as ondas ligeiras Desta corrente tão clara Inundarem mansamente Estes álamos, que banham; Eu espero, que a memória O conserve nestas águas, Por padrão dos desenganos, Por triunfo de uma ingrata. E na frondosa ribeira Deste rio, triste a alma Girará sempre avisando, Quem lhe soube ser tão falsa. --------------------------------------- ANTANDRA ROMANCE II Pastora do branco arminho, Não me sejas tão ingrata: Que quem veste de inocente, Não se emprega em matar almas. Deixa o gado, que conduzes; Não o guies à montanha: Porque em poder de uma fera, Não pode haver segurança. Mas ah! Que o teu privilégio, É louco, quem não repara: Pois suavizando o martírio, Obrigas mais, do que matas. Eu fugirei; eu, pastora, Tomarei somente as armas; E hão de conspirar comigo Todo o campo, toda a praia. Tenras ovelhas, Fugi de Antandra; Que é flor fingida, Que áspides cria, que venenos guarda. |
FÁBULA
FÁBULA DO RIBEIRÃO DO CARMO SONÊTO A vós, canoras ninfas, que no amado Berço viveis do plácido Mondego, Que sois da minha lira doce emprego, Inda quando de vós mais apartado; A vós do pátrio rio em vão cantado O sucesso infeliz eu vos entrego; E a vítima estrangeira, com que chego, Em seus braços acolha o vosso agrado. Vêde a história infeliz, que Amor ordena, Jamais de fauno ou de pastor ouvida, Jamais cantada na silvestre avena. Se ela vos desagrada, por sentida, Sabei, que outra mais feia em minha pena Se vê entre estas serras escondida. Aonde levantado Gigante, a quem tocara, Por decreto fatal de Jove irado, A parte extrema, e rara Desta inculta região, vive Itamonte, Parto da terra, transformado em monte; De uma penha, que esposa Foi do invicto Gigante, Apagando Lucina a luminosa, A lâmpada brilhante, Nasci; tendo em meu mal logo tão dura, Como em meu nascimento, a desventura. Fui da florente idade Pela cândida estrada Os pés movendo com gentil vaidade; E a pompa imaginada De toda a minha glória num só dia Trocou de meu destino a aleivosia. Pela floresta, e prado Bem polido mancebo, Girava em meu poder tão confiado, Que até do mesmo Febo Imaginava o trono peregrino Ajoelhado aos pés do meu destino. Não ficou tronco, ou penha, Que não desse tributo A meu braço feliz; que já desdenha, Despótico, absoluto, As tenras flores, as mimosas plantas, Em rendimentos mil, em glórias tantas. Mas ah! Que Amor tirano No tempo, em que a alegria Se aproveitava mais do meu engano; Por aleivosa via Introduziu cruel a desventura, Que houve de ser mortal, por não ter cura. Vizinho ao berço caro, Aonde a pátria tive, Vivia Eulina, esse prodígio raro, Que não sei, se ainda vive, Para brasão eterno da beleza, Para injúria fatal da natureza. Era Eulina de Aucolo A mais prezada filha; Aucolo tão feliz, que o mesmo Apolo Se lhe prostra, se humilha Na cópia da riqueza florescente, Destro na lira, no cantar ciente. De seus primeiros anos Na beleza nativa, Humilde Aucolo, em ritos não profanos, A bela ninfa esquiva Em voto ao sacro Apolo consagrara; E dele em prêmio tantos dons herdara. Três lustros, todos d'ouro, A gentil formosura, Vinha tocando apenas, quando o louro, Brilhante Deus procura Acreditar do pai o culto atento, Na grata aceitação do rendimento. Mais formosa de Eulina Respirava a beleza; De ouro a madeixa rica, e peregrina Dos corações faz presa; A cândida porção da neve bela Entre as rosadas faces se congela. Mas inda, que a ventura Lhe foi tão generosa, Permite o meu destino, que uma dura, Condição rigorosa Ou mais aumente enfim, ou mais ateie Tanto esplendor; para que mais me enleie. Não sabe o culto ardente De tantos sacrifícios Abrandar o seu nume: a dor veemente, Tecendo precipícios, Já quase me chegava a extremo tanto, Que o menor mal era o mortal quebranto. Vendo inútil o empenho De render-lhe a fereza, Busquei na minha indústria o meu despenho: Com ingrata destreza Fiei de um roubo (oh mísero delito!) A ventura de um bem, que era infinito. Sabia eu, como tinha Eulina por costume, (Quando o maior planeta quase vinha Já desmaiando o lume, Para dourar de luz outro horizonte) Banhar-se nas correntes de uma fonte. A fugir destinado Com o furto precioso, Desde a pátria, onde tive o berço amado; Recolhi numeroso Tesouro, que roubara diligente A meu pai, que de nada era ciente. Assim pois prevenido De um bosque à fonte perto, Esperava o portento apetecido Da ninfa; e descoberto Me foi apenas, quando (oh dura empresa!) Chego; abraço a mais rara gentileza. Quis gritar; oprimida A voz entre a garganta Apolo? diz, Apol... a voz partida Lhe nega forca tanta: Mas ah! Eu não sei como, de repente Densa nuvem me põe do bem ausente. Inutilmente ao vento Vou estendendo os braços: Buscar nas sombras o meu bem intento: Onde a meus ternos laços. . . ! Onte te escondes, digo, amada Eulina? Quem tanto estrago contra mim fulmina? Mas ia por diante; Quando entre a nuvem densa Aparecendo o corpo mais brilhante, Eu vejo (oh dor imensa!) Passar a bela ninfa, já roubada Do Númen, a quem fora consagrada. Em seus braços a tinha O louro Apolo presa; E já ludíbrio da fadiga minha, Por amorosa empresa, Era despojo da deidade ingrata O bem, que de meus olhos me arrebata. Então já da paciência As rédeas desatadas, Toco de meus delírios a inclemência: E de todo apagadas Do acerto as luzes, busco a morte ímpia, De um agudo punhal na ponta fria. As entranhas rasgando, E sobre mim caindo, Na funesta lembrança soluçando, De todo confundindo Vou a verde campina; e quase exangue Entro a banhar as flores de meu sangue. Inda não satisfeito O Númen soberano, Quer vingar ultrajado o seu respeito; Permitindo em meu dano. Que em pequena corrente convertido Corra por estes campos estendido. E para que a lembrança De minha desventura Triunfe sabre a trágica mudança Dos anos, sempre pura, Do sangue, que exalei, ó bela Eulina, A cor inda conservo peregrina. Porém o ódio triste De Apolo mais se acende; E sobre o mesmo estrago, que me assiste, Maior ruína empreende: Que chegando a ser ímpia uma deidade, Excede toda a humana crueldade. Por mais desgraça minha, Dos tesouros preciosos Chegou notícia, que eu roubado tinha, Aos homens ambiciosos; E crendo em mim riquezas tão estranhas, Me estão rasgando as míseras entranhas. Polido o ferro duro Na abrasadora chama Sobre os meus ombros bate tão seguro, Quem nem a dor, que clama, Nem o estéril desvelo da porfia Desengana a ambiciosa tirania. Ah mortais! Até quando Vos cega o pensamento! Que máquinas estais edificando Sobre tão louco intento? Como nem inda no seu reino imundo Vive seguro o Báratro profundo! Idolatrando a ruína Lá penetrais o centro, Que Apolo não banhou, nem viu Lucina; E das entranhas dentro Da profanada terra, Buscais o desconcerto, a fúria, a guerra. Que exemplos vos não dita Do ambicioso empenho De Polidoro a mísera desdita! Que perigo o lenho, Que entregastes primeiro ao mar salgado, Que desenganos vos não tem custado! Enfim sem esperança, Que alívio me permita, Aqui chorando estou minha mudança; E a enganadora dita, Para que eu viva sempre descontente, Na muda fantasia está presente. Um murmurar sonoro Apenas se me escuta; Que até das mesmas lágrimas, que choro, A Deidade Absoluta Não consente ao clamor, se esforce tanto, Que mova à compaixão meu terno pranto. Daqui vou descobrindo A fábrica eminente De uma grande cidade; aqui polindo A desgrenhada frente, Maior espaço ocupo dilatado, Por dar mais desafogo a meu cuidado. Competir não pretendo Contigo, ó cristalino Tejo, que mansamente vais correndo: Meu ingrato destino Me nega a prateada majestade, Que os muros banha da maior cidade. As ninfas generosas, Que em tuas praias giram, Ó plácido Mondego, rigorosas De ouvir-me se retiram; Que de sangue a corrente turva, e feia Teme Ericina, Aglaura, e Deiopéia. Não se escuta a harmonia Da temperada avena Nas margens minhas; que a fatal porfia Da humana sede ordena, Se atenda apenas o ruído horrendo Do tosco ferro, que me vai rompendo. Porém se Apolo ingrato Foi causa deste enleio, Que muito, que da Musa o belo trato Se ausente de meu seio, Se o deus, que o temperado coro tece, Me foge, me castiga, e me aborrece! Enfim sou, qual te digo, O Ribeirão prezado, De meus engenhos a fortuna sigo; Comigo sepultado Eu choro o meu despenho; eles sem cura Choram também a sua desventura. |
Poemas de Cláudio Manoel da Costa
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