Cecília Meireles
Reinvenção
A vida só é possível
reinventada.
Anda o sol pelas campinas
e passeia a mão dourada pelas águas, pelas folhas… Ah! tudo bolhas que vem de fundas piscinas de ilusionismo… — mais nada.
Mas a vida, a vida, a vida,
a vida só é possível reinventada.
Vem a lua, vem, retira
as algemas dos meus braços. Projeto-me por espaços cheios da tua Figura. Tudo mentira! Mentira da lua, na noite escura.
Não te encontro, não te alcanço…
Só — no tempo equilibrada, desprendo-me do balanço que além do tempo me leva. Só — na treva, fico: recebida e dada.
Porque a vida, a vida, a vida,
a vida só é possível reinventada.
Interlúdio
Cecília Meireles
As palavras estão muito ditas
e o mundo muito pensado. Fico ao teu lado. Não me digas que há futuro nem passado. Deixa o presente — claro muro sem coisas escritas. Deixa o presente. Não fales, Não me expliques o presente, pois é tudo demasiado. Em águas de eternamente, o cometa dos meus males afunda, desarvorado. Fico ao teu lado. |
Marcha
Cecília Meireles
As ordens da madrugada
romperam por sobre os montes: nosso caminho se alarga sem campos verdes nem fontes. Apenas o sol redondo e alguma esmola de vento quebram as formas do sono com a idéia do movimento.
Vamos a passo e de longe;
entre nós dois anda o mundo, com alguns mortos pelo fundo. As aves trazem mentiras de países sem sofrimento. Por mais que alargue as pupilas, mais minha dúvida aumento.
Também não pretendo nada
senão ir andando à toa, como um número que se arma e em seguida se esboroa, - e cair no mesmo poço de inércia e de esquecimento, onde o fim do tempo soma pedras, águas, pensamento.
Gosto da minha palavra
pelo sabor que lhe deste: mesmo quando é linda, amarga como qualquer fruto agreste. Mesmo assim amarga, é tudo que tenho, entre o sol e o vento: meu vestido, minha música, meu sonho e meu alimento.
Quando penso no teu rosto,
fecho os olhos de saudade; tenho visto muita coisa, menos a felicidade. Soltam-se os meus dedos ristes, dos sonhos claros que invento. Nem aquilo que imagino já me dá contentameno.
Como tudo sempre acaba,
oxalá seja bem cedo! A esperança que falava tem lábios brancos de medo. O horizonte corta a vida isento de tudo, isento… Não há lágrima nem grito: apenas consentimento. |
Noções
Cecília Meireles
Entre mim e mim, há vastidões bastantes
para a navegação dos meus desejos afligidos.
Descem pela água minhas naves revestidas de espelhos.
Cada lâmina arrisca um olhar, e investiga o elemento quea atinge.
Mas, nesta aventura do sonho exposto à correnteza, só recolho o gosto infinito das respostas que não se encontram.
Virei-me sobre a minha própria existência, e contemplei-a
Minha virtude era esta errância por mares contraditórios, e este abandono para além da felicidade e da beleza.
Ó
meu Deus, isto é a minha alma: qualquer coisa que flutua sobre este
corpo efêmero eprecário, como o vento largo do oceano sobre a areia
passiva einúmera...
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De um lado cantava o sol
Cecília Meireles
De um lado cantava o sol,
do outro, suspirava a lua. No meio, brilhava a tua face de ouro, girassol!
Ó montanha da saudade
a que por acaso vim: outrora, foste um jardim, e és, agora, eternidade! De longe, recordo a cor da grande manhã perdida. Morrem nos mares da vida todos os rios do amor?
Ai! celebro-te em meu peito,
em meu coração de sal, Ó flor sobrenatural, grande girassol perfeito!
Acabou-se-me o jardim!
Só me resta, do passado, este relógio dourado que ainda esperava por mim . . . |
Timidez
Cecília Meireles
Basta-me um pequeno gesto,
feito de longe e de leve, para que venhas comigo e eu para sempre te leve…
- mas só esse eu não farei.
Uma palavra caída
das montanhas dos instantes desmancha todos os mares e une as terras mais distantes…
- palavra que não direi.
Para que tu me adivinhes,
entre os ventos taciturnos, apago meus pensamentos, ponho vestidos noturnos,
- que amargamente inventei.
E, enquanto não me descobres,
os mundos vão navegando nos ares certos do tempo, até não se sabe quando…
e um dia me acabarei.
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Atitude
Cecília Meireles
Minha esperança perdeu seu nome...
Fechei meu sonho, para chamá-la.
A tristeza transfigurou-me
como o luar que entra numa sala.
O último passo do destino
parará sem forma funesta,
e a noite oscilará como um dourado sino
derramando flores de festa.
Meus olhos estarão sobre espelhos, pensandonos caminhos que existem dentro das coisas transparentes.
E um campo de estrelas irá brotandoatrás das lembranças ardentes.
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MurmúrioCecília Meireles
Traze-me um pouco das sombras serenas
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Serenata
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